Maria Mire +  Colectivo Embankment

 8 de Janeiro -  6 de Fevereiro 2009

 

Nesta edição de “Para a Internidade...” foram apresentadas duas peças distintas: uma instalação vídeo de Maria Mire no “nicho” da livraria e uma intervenção composta de diversos elementos (vídeo, som, vitrina, documentos escritos...) do Colectivo Embankment no piso -1, na “téléthèque”.

 

Maria Mire

“CCTV”

A recorrência no dia a dia e nos media da palavra “segurança” é um sintoma de uma das preocupações principais dos tempos que correm. Não é aqui lugar para debater ou questionar os seus fundamentos (não que esta questão não seja pertinente...) mas, mais simplesmente para perspectivar um intervalo dessa tensão de medo permanente.

Um dos pontos de partida desta trabalho é um diálogo com a arquitectura do espaço em mezzanine que alberga a livraria francesa e propicia uma vista dominante do hall de entrada do Instituto Franco-Português. Essa visão assume o olho das câmaras de um pretenso CCTV (closed-circuit television) , sistema de vídeo-vigilância.

À medida que vamos lendo esta peça podemos descortinar as diferentes layers que a compõem e que colocam em jogo o binómio ficção/realidade: construção de uma realidade remetendo logo à partida, subtilmente, para um universo onírico e inverosímil, para uma “surrealidade” ou, inversamente, ilusão de uma ficção mais real do que se pensaria.

A projecção das imagens vídeo criadas embate em objectos reais que nos projectam, por sua vez também, para um outro universo que o da realidade (imediatamente palpável): os livros.

É por esta via sugerido um relaxamento da vigilância ou uma “desvigilância”: um olhar vigilante prolongado não consegue evitar momentos de deriva. A actividade do inconsciente  na mente, por exemplo, de um guarda que ao fim de muitas horas de vigília se perde num olhar criativo e sonha com uma paisagem na sua actividade de ver e não ver, porque na realidade, na maior parte do tempo, não se passa nada...

Ficha Técnica: CCTV, 2008. Livros, vídeo pal, sem som a cores, projector, leitor de DVD. 




“CCTV” pormenor (projecção em pilha de livros)





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Embankment #5* (Colectivo Embankment)

 

Para o dispositivo Embankment #5 foi detectado um espaço preexistente, a téléthèque no piso -1 do Instituto Franco Português, e ali projectada a planta de um modelo de tabernáculo. Reconhecemos neste dispositivo a reciclagem de alguns objectos e o prolongamento das problemáticas num mesmo campo semântico de Embankment #4. Mas encontramos aqui um maior número de estratos e propostas de diferentes níveis e elementos de leitura conjugáveis entre si, o mais e menos óbvio sendo que se trata de uma verdadeira “rampa de lançamento” para a indefinida e vasta internidade[1] ou para “o outro mundo” que é aqui tão fortemente sugerido que se torna quase palpável.

Na entrada do Instituto Franco Português [I.F.P.]  existem placas (ali há muito e felizmente esquecidas) que indicam a existência duma téléthèque no subsolo. À pergunta “o que é a téléthèque?” teria dificuldade em responder porque é uma palavra (mais uma) que não consta no dicionário, mas que por si só desperta várias hipóteses de sentido. O que de facto ali encontramos é uma sala de visionamento de vídeos e um estúdio de luxo de captação de som e com equipamento de montagem vídeo, mas totalmente obsoleto e praticamente inutilizado. Em suma, uma peça de museologia. Tratou-se portanto de reactualizar ou ressuscitar e abrir este local ao público. O que tem consequências.

Encontrar e escolher este local foi a primeira etapa na construção deste trabalho, resultado de diversas visitas e instigações nas instalações do I.F.P.; a segunda etapa, foi uma estadia ou pequena residência no Fujaco, uma aldeia situada algures num local recôndito do centro norte do país, com tudo o que isso implica de arcaico, onde (no mínimo) se colheram as imagens vídeo.

O que concretamente podemos ver no Embankment #5 no Instituto Franco Português eram três salas enigmáticas, redesenhadas e bastante sombrias. Logo desde a entrada no I.F.P., deviam-se seguir as indicações para a téléthèque e um longínquo som variável e orgânico em subgraves inquietantes que se acentuava conforme íamos descendo as escadas para o piso -1 e aproximando-nos da peça em questão.A primeira, funcionou como uma antecâmara, com uma vitrina oferecendo vagas pistas de leituras com a planta do já referido tabernáculo desenhada e gravada em placas em acrílico cujas linhas e contornos estavam iluminados pelas pequenas e mágicas L.E.D.s (Light-Emitting Diode). A porta da terceira sala dá para esta primeira e tremia com o imponente som vindo do interior, parecendo querer rebentar, ceder a uma forte tensão contida naquele interior vedado e mistificado. Na segunda sala, uma plateia, um local para permanecer (ou não?), uma sala sombria, com a luz obsessiva de um estroboscópio (elemento essencial para o transe pós-moderno) a contrariar o conforto dos cadeirões, e do chão e das paredes totalmente cobertos de uma alcatifa espessa. Nesta segunda sala, da plateia, podia ver-se um primeiro e pesado monitor e, ainda observar o interior da impenetrável terceira sala através do típico vidro/aquário de estúdio de som (a régie), o core desta peça. Monitores miniaturas de vídeo vigilância com a típica chuva de ausência e outros quatro monitores onde eram difundidas imagens de vídeos: só caveiras de cabras com os devidos cornos, num ribeiro fresco de água corrente e crepitante, organizadas e captadas de diferentes formas, com a aparência evidente de tótemes e de resquícios de rituais primitivos ou mesmo animais (as cabras vão ali morrer espontaneamente?). Estas diferentes imagens de sórdidos tótemes são repetidas no monitor de maiores dimensões no interior da segunda sala, a da plateia.

Tudo neste dispositivo, são jogos de reflexos, é mise en abîme, muito impulsionada também pela indispensável folha de sala. Toda a obsolescência tecnológica faz aqui eco aos rituais religiosos do tabernáculo, e os tótemes remetem para rituais místicos ainda mais arcaicos. Podemos tecer pensamentos e associar, a partir de todos estes elementos oferecidos, teorias sobre a técnica e a obsolescência, ou encontrar a denúncia de pertinentes primitivismos[2] atemporais e que se querem, numa espécie de pré-modernismo, disfarçados pela sofisticação e a alta tecnologia. No entanto, o que mais fascina aqui é, por um lado, a escassez de meios — tudo foi reciclado ou simplesmente reorganizado para esta peça — com que somos propulsados eficazmente para o “outro mundo” e nos leva a visitar o incorpóreo[3]. Por outro, fascina também a forma racional e contida da sugestão desse “outro mundo”, de um além. Entrar neste território do desconhecido é raro, no universo das artes visuais mais investido, desde há muito, em problemáticas sócio-políticas ou ligadas ao quotidiano, e fechado numa perpétua e hermética auto-crítica  auto-referencial.

Je n’y peux rien, de toute façon, finit-il par conclure. Nakata est dans le monde des morts, et moi, je suis dans celui des vivants. On est en décalage.

(...)

-Nous sommes à la frontière des mondes, et nous parlons un langage comum, c’est tout. Ces mots plongèrent Hoshino dans un abîme de perplexité.

Na primeira frase citada, Hoshino uma das personagens do conto[4] de onde é tirada esta citação não possuía poderes para aceder ao “outro mundo”. Na segunda, esse mesmo personagem entra, sem saber como, em diálogo com um gato que é aliás quem fala neste segundo excerto, e percebe-se então que o portal (uma comum pedra branca cujo peso e resistência varia consoante se está activa ou não) se tinha finalmente reaberto.

Parece insólito falar do que vem depois da morte e temas correlativos, e os espaços e tempos para pensar ou falar destes assuntos são reduzidos, e tudo aqui é — tranquilizem-se — metafórico. Não obstante, muito significante. Foi aqui criado e proporcionado esse espaço-tempo de confrontação, no seu sentido mais literal, com a existência do “outro mundo”, pela forte sugestão de que algo de paranormal e muito lynchiano está a decorrer. Ali passa-se para uma outra dimensão aquela a que se acede por um portal ou seu equivalente. Cabe a cada um de nós disponibilizar-se, detectar os sintomas e entrar por esse portal.

 


*Texto incluído no fascículo editado por  ocasião de Embankment #6. Saber mais (aqui) e (aqui).


Ficha Técnica: Embankment #5, 2008. Intervenção. Vários meios, e espaços. 



[1] Com o termo inventado internidade queria-se sugerir uma alternativa à eternidade (noção obsoleta?) e a existência de um arquivo, um espaço acessível em rede, imaterial, abstracto e mental, não tecnológico e anterior ao da internet.

[2] Cf.William Rubin, “Le primitivisme moderne”, in Le primitivisme dans l’Art  du XXème siècle – Les Artistes Modernes devant l’art tribal, Flammarion, 1987

[3] Cf. Anne Cauquelin, Fréquenter les Incorporels, P.U.F., Paris, 2006

[4]Haruki Murakami, Kafka sur le Rivage, tradução de Corinne Atlan, Éditions 10/18, “Domaine Étranger”, Belfond 2006 (Título original: Umibe no Kafuka, 2003), pág. 581 e pág. 609